Violência doméstica

Violência doméstica

O tema que hoje abordamos é dos mais debatidos na maioria das sociedades contemporâneas. Não temos, por isso, a pretensão de apresentar factos novos ou a pedra de toque que fará com que este comportamento, tipificado como crime, desapareça. Queremos, sim, contribuir para que nunca caia num esquecimento que não fará justiça às inúmeras vítimas por esse mundo fora.

Classicamente sabemos que nenhum género está excluído de ser vítima. Mas, também, não é menos verdade que as mulheres continuam a serem o género que preenche largamente a estatística. Realçamos que, nem estamos, neste artigo a debruçarmo-nos sobre todas as outras sociedades onde, infelizmente, este tipo de violência não só não é considerado crime, mas é aceite como tradição. O Mundo que vivemos.

Podemos, de forma sucinta, considerar duas colunas vertebrais deste tipo de comportamento. Podem ser exercidas de forma autónoma ou em conjunto. O que vemos, nos inúmeros casos que acompanhamos, dão-nos essa perceção da realidade.  Estas duas formas podem ser a física e a psicológica. Senão vejamos:

A forma mais grave da violência doméstica, física, termina no homicídio e, em muitos casos crescentes, acontecem sem que tenha existido violência física anterior. Naturalmente que a psicologia já estabeleceu um padrão que caracteriza o agressor que, como todos os padrões, não têm de ser uma equação matemática com fórmula de sucesso de encaixe. Ninguém vem com um aviso de agressor.

Podemos, sim, e seja qual for o género perceber que são pessoas com personalidade controladora, sedutora mas com propensão a comportamentos agressivos (sejam verbais ou físicos). Retiram a atenção da vítima, retiram autonomia, tentam que a vítima lhes seja devota (e não existe qualquer exagero ao dizermos isto), lidam mal com a rejeição sendo que encaram tal facto como traição.

Nesta fase é importante compreendermos o restante ingrediente da violência, a psicológica. Então, como é que a vítima, ainda assim, e com as ajudas atuais disponibilizadas, continua ali?

A resposta tem uma aparente simplicidade: o agressor entra na cabeça da vítima. É um controlo coercivo exercido de forma, muitas vezes, subtil. O que vemos nos inúmeros casos que temos acompanhado é que as vítimas acabam, sempre, por se sentirem culpadas de terem desencadeado aquele comportamento. “Se eu não tivesse dito aquilo”, “se eu não tivesse pedido para irmos ao café” “se eu não tivesse questionado” e por aí fora. A dinâmica psicológica é tao forte (e não nos esqueçamos que estamos a falar de comportamentos transversais na nossa sociedade, onde em muitos casos não existe qualquer dependência económica de nenhuma parte, como era há uns anos atrás). Assim, se pensarmos com esta clareza percebemos que o domínio psicológico é o ingrediente que mantém a disfuncionalidade do comportamento reiterado. A vítima sente culpa, a vítima sente vergonha, perde confiança, perde autoestima e, ao contrário, o agressor ganha propensões titânicas na relação. Não nos esqueçamos que até há poucos anos atrás, e por força de uma desatenção muito grande nestes comportamentos ilícitos, o crime de violência doméstica nem era considerado um crime público, daí que muitas vezes a vítima desistia da queixa e nada acontecia. Fosse por medo, fosse pela culpa. Tudo o que falámos acima. Felizmente que, aos dias de hoje é um crime público o que significa que o procedimento criminal não está dependente de queixa por parte da vítima, bastando uma denúncia ou o conhecimento do crime, para que o Ministério Público promova o processo.

Esta mudança fez com que, naturalmente, existisse uma maior divulgação da temática, maioritariamente nos meios de comunicação social o que vai aumentado o desconforto, porque a sociedade de forma geral era leiga e não conseguia formar uma opinião concreta sobre esta temática, muitas vezes partia para o julgamento e culpabilizava a mulher pelas suas atitudes, onde, lá está, voltamos a cair na culpa e na vergonha.

Aliás, até numa sociedade já menos leiga e, não querendo, tomar o todo pela parte, recordemos o mediático caso do célebre acórdão do Juiz Desembargador Neto Moura há apenas dois anos onde justifica a manutenção da pena suspensa para um homem que agrediu violentamente a mulher, com uma moca com pregos : “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”, os magistrados argumentam que há sociedades “em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”; que “na Bíblia podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”; e ainda que o Código Penal de 1886 “punia com uma pena pouco mais do que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse ato a matasse”.

Segundo o acórdão, “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou (são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras), e por isso [a sociedade] vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”. Processo n.°355/15.2 GAFLG.P1, Tribunal da Relação do Porto, disponível em www.dgsi.pt.  É um caminho longo, mas seguramente, mais perto da justiça. Nesta justiça que falamos, o crime encontra-se tipificado no artigo 152.º do Código Penal.

Por último, dizermos que o Direito, faz-se para as relações humanas. Pessoalmente é o mais fascinante para mim. As pessoas, a forma como interagem sejam em pequenos ciclos, sejam em maior escala. Os afetos. E a conduta e coercibilidade que o Direito tem de impor para a tão essencial justiça, neste caso, nas relações humanas.

Para concluir, nenhuma relação humana, maioritariamente amorosa, nestes casos em concreto, deve privar um ser humano de ser feliz e de ter o seu sorriso. Eugénio de Andrade escreveu:

“Creio que foi o sorriso, o sorriso foi quem abriu a porta. Era um sorriso com muita luz, lá dentro, apetecia entrar nele, tirar a roupa, ficar nu dentro daquele sorriso. Correr, navegar, morrer naquele sorriso”.

Morrer, só num sorriso assim.

 

Sílvia Resende, Partner e Advogada na Lacerda Dias e Associados, Sociedade de Advogados, R.L.

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